sábado, março 19, 2005

Jardim



A luz quebra-se em mil pedaços quando encontra as folhas e os ramos. O vento escolhe os cantos mais insuspeitos para lançar um pouco de confusão e levar numa valsa, tão bonita quanto desengonçada, papéis, folhas caídas e grãos de areia. Já a sombra e a aragem invadem o jardim humilde que há escondido nas traseiras de uns prédios.

Imagino que tenha nascido do improviso, duas ou três flores numa lata a fazer de vaso, ou directamente na terra, com uma cerca mais simbólica que eficazmente protectora. Acho que é exactamente a sua simplicidade que me cativa, a dedicação que ali se adivinha, alguém decidir fazer crescer um jardim num sítio tão insuspeito quanto talvez inusitado.

Ao fim da tarde, à medida que as sombras crescem e invadem o espaço – é sempre um dos primeiros sítios a ser invadido por ela – instala-se aquela quietude que antecede a noite, já depois do sol posto. Tudo convida ao silêncio: os sons da cidade ficam mais distantes, as vozes mais difusas. Permanece o som do vento nos ramos das oliveiras que por lá há, sente-se mais o cheiro das flores, as buganvíleas, as sardinheiras, o alecrim parecem crescer, arrepia-se a pele com o fresco do ar - à medida que os olhos mergulham no escurecer, o resto dos sentidos desperta para a suavidade das coisas.

Quando subo do jardim o mundo cá em cima espanta: lá ao fundo da cidade, por trás da serra, ainda há afinal raios de sol a dourar o céu e as coisas, a entrar pelos olhos dentro, e os sentidos submergem no barulho da cidade a funcionar, das pessoas que regressam a casa, das crianças nas últimas brincadeiras.
O mundo segue o jardim no caminho para o anoitecer, as sombras sobem pelos prédios e os sons reduzem-se a sussurros.
Entretanto, o jardim já dorme.

1 comentário:

José Mata disse...

Surge-me sobretudo um pensamento; que alguma força um dia se tenha lembrado de criar a cidade (prédios, trânsito, pessoas em correria, etc), com a ideia subtil de, nos cantos mais recônditos, mais insuspeitáveis, guardar, assim escondidas, algumas manifestações singulares de beleza - tornando-as assim mais especiais.

E ás vezes não é só o objecto: é o humor que dispomos; é o instante propício; é o chato do Sol que não está a incidir com o ângulo certo!

Há coisas que não se encontram - é preciso ter sorte; ou nascer com a inclinação de descobrir em todo o lado as idiossincrasias de um mundo que, caso contrário, nos parece aborrecido.

aborrecido... aborrecido... orrecido... recido....... cido...... o......... ...............