domingo, março 27, 2005

segunda-feira, março 21, 2005

Três

I. José Gomes Ferreira

Poeta o que é?
Um homem que leva
o facho da treva
no fundo da mina
- mas apenas vê
o que não ilumina.


II. Sophia de Mello Breyner Andresen

Escrita do poema

A mão traça no branco das paredes
A negrura da letra
Há um silêncio grave
A mesa brilha docemente o seu polido

De certa forma
Fico alheia


III. Sebastião da Gama

O Poeta
II


Tudo ganhou sentido num momento...
Água mansa com choupos reflectidos,
teu olhar descansava no do Poeta;
a poesia das coisas sem Poesia,
que no olhar do Poeta dormitava,
de súbito nas coisas acordava
- tão natural, tão íntima, tão própria,
como se fora delas que nascera...

dia mundial da poesia

Mas o que vou dizer da Poesia? O que vou dizer destas nuvens, deste céu? Olhar, olhar, olhá-las, olhá-lo, e nada mais. Compreenderás que um poeta não pode dizer nada da Poesia. Isso fica para os críticos e os professores. Mas nem tu, nem eu, nem poeta algum sabemos o que é a poesia.
Aqui está, olha. Tenho o fogo em minhas mãos.


Federico Garcia Lorca

sábado, março 19, 2005

Jardim



A luz quebra-se em mil pedaços quando encontra as folhas e os ramos. O vento escolhe os cantos mais insuspeitos para lançar um pouco de confusão e levar numa valsa, tão bonita quanto desengonçada, papéis, folhas caídas e grãos de areia. Já a sombra e a aragem invadem o jardim humilde que há escondido nas traseiras de uns prédios.

Imagino que tenha nascido do improviso, duas ou três flores numa lata a fazer de vaso, ou directamente na terra, com uma cerca mais simbólica que eficazmente protectora. Acho que é exactamente a sua simplicidade que me cativa, a dedicação que ali se adivinha, alguém decidir fazer crescer um jardim num sítio tão insuspeito quanto talvez inusitado.

Ao fim da tarde, à medida que as sombras crescem e invadem o espaço – é sempre um dos primeiros sítios a ser invadido por ela – instala-se aquela quietude que antecede a noite, já depois do sol posto. Tudo convida ao silêncio: os sons da cidade ficam mais distantes, as vozes mais difusas. Permanece o som do vento nos ramos das oliveiras que por lá há, sente-se mais o cheiro das flores, as buganvíleas, as sardinheiras, o alecrim parecem crescer, arrepia-se a pele com o fresco do ar - à medida que os olhos mergulham no escurecer, o resto dos sentidos desperta para a suavidade das coisas.

Quando subo do jardim o mundo cá em cima espanta: lá ao fundo da cidade, por trás da serra, ainda há afinal raios de sol a dourar o céu e as coisas, a entrar pelos olhos dentro, e os sentidos submergem no barulho da cidade a funcionar, das pessoas que regressam a casa, das crianças nas últimas brincadeiras.
O mundo segue o jardim no caminho para o anoitecer, as sombras sobem pelos prédios e os sons reduzem-se a sussurros.
Entretanto, o jardim já dorme.

segunda-feira, março 14, 2005

5º Domingo

S. João de Damasco (cerca 675-749), monge, teólogo, doutor da Igreja
Matinas do sábado de Lázaro

Porque eras Deus verdadeiro, tu conhecias, Senhor, o sono de Lázaro e preveniste os teus discípulos...
Mas na tua carne, Tu, que no entanto não tens limites, vens até Betânia.

Chorando sobre o teu amigo, na tua compaixão puseste fim às lágrimas de Marta;
pela tua Paixão voluntária, secaste todas as lágrimas do rosto do teu povo (Is 25,8).

"Bendito sejas, Deus de nossos Pais!" (Esd 7,27).

Quanto a mim, estrangulado pelas amarras dos meus pecados, ergue-me também e eu cantarei:
"Bendito sejas, Deus dos nossos Pais!"...

Como mortal, invocas o Pai;
como Deus, despertas Lázaro.
Tu andas, falas, choras, meu Salvador, mostrando a tua natureza humana;
mas, ao despertares Lázaro, revelas a tua natureza divina.

De uma maneira indizível, Senhor, meu Salvador, de acordo com as tuas duas naturezas e de uma forma soberana, realizaste a minha salvação.

quinta-feira, março 10, 2005

Escuto

Escuto mas não sei
Se o que ouço é silêncio
Ou Deus

Escuto sem saber se estou ouvindo
O ressoar das planícies do vazio
Ou a consciência atenta
Que nos confins do universo
Me decifra e fita

Apenas sei que caminho como quem
É olhado amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco


Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, março 06, 2005

4º Domingo

Santo Ireneu de Lyon (cerca de 130 - cerca de 208), bispo, teólogo e mártir
Contra as Heresias

Quando se tratou do cego de nascença, não foi só por uma palavra mas por uma acção que o Senhor lhe concedeu a vista. Não agiu assim sem razão nem por acaso, mas para que conhecêssemos a Mão de Deus que, no princípio tinha modelado o homem. Por isso, quando os discípulos lhe perguntaram de quem era a culpa deste homem ser cego, dele mesmo ou dos seus pais, o Senhor declarou: "Nem pecou ele, nem os seus pais, mas isto aconteceu para nele se manifestarem as obras de Deus". Estas "obras de Deus" são, primeiro que tudo, a criação do homem que a Escritura bem descreve como uma acção: "E Deus tomou um pouco de argila e modelou o homem" (Gn 2,7). Foi por isso que o Senhor cuspiu no chão, fez lama e ungiu os olhos do cego. Mostrava assim de que modo se tinha realizado a moldagem inicial e, para aqueles que eram capazes de compreender, manifestava a Mão de Deus que tinha esculpido o homem a partir da argila...

E porque, nesta carne modelada em Adão, o homem tinha caído na transgressão e precisava do banho do novo nascimento (Tt 3,5), o Senhor disse ao cego, após ter-lhe untado os olhos com a lama: "Vai lavar-te à piscina de Siloé".
Concedia-lhe assim ao mesmo tempo a remodelagem e a regeneração operada pelo banho. Desta forma, depois de se ter lavado, "ele regressou, vendo bem", a fim de reconhecer aquele que o tinha remodelado e aprender ao mesmo tempo quem era o Senhor que lhe tinha dado a vida...

Assim, aquele que, no princípio, tinha modelado Adão e a quem o Pai tinha dito: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança" (Gn 1,26), esse mesmo se manifestou aos homens no fim dos tempos e remodelou os olhos deste descendente de Adão.

quinta-feira, março 03, 2005

Confio, por isso sou livre?

Uns reduzem a liberdade e a ideia de livre-arbítrio, fazendo-o desaparecer sob o jugo da servilidade e do conformismo. Esquecem que a obediência à vontade de Deus tem que vir da adesão do coração, e da confiança plena e sincera de que o que Ele me reserva é efectivamente o melhor para mim. Se a adesão não for voluntária - e ainda mais, se não nascer da compreensão - só pode levar ou à revolta ou a um conformismo apático ou fideísta, que destrói o próprio valor da confiança.
Esta necessária compreensão de que se fala não passa por tentar escrutinizar os desígnios de Deus, nem se trata de um contrato que só assinamos depois de ter a certeza que todas as cláusulas estão ao nosso gosto. Tal como diz Edith Stein, "Tais condições não se inscrevem num contrato com o Céu. A confiança em Deus será apenas inquebrantável se se está disposto a aceitar tudo o que venha da mão do Pai. Só ele sabe o que nos convém. E se forem mais convenientes a necessidade e a privação (...) então devemos estar prontos para aceitar também isso."
A questão é de Amor. Se nos sentimos filhos amados do Pai, sabemos com verdade que ele só nos reserva o melhor para nós. Sabemos igualmente que o que isso é, Ele o sabe melhor que ninguém - confiamos na Sua Sabedoria, que tem o Amor na sua base, mais uma vez.
Falar de confiança, falar de obediência, não faz sentido se não houver antes a experiência de se sentir verdadeiramente amado por Aquele que nos pede que o sigamos.

Por outro lado, essa experiência de Amor depende da própria confiança que se tem: é ao entregar-me nas mãos de Deus, ao viver pelos Seus desígnios, que me vou apercebendo para onde Ele me leva, que vou descobrindo que há um plano feito pelo Pai para cada um de nós.
Seguir o caminho que Ele nos propõe é um exercício considerável de humildade. Não só discordamos imensas vezes de Deus quanto ao que achamos ser o melhor para nós, como nos custa a ideia de não ser auto-suficiente, de a minha auto-realização necessariamente não passar apenas por mim. Aí a Vontade de Deus deixa de surgir como plano amoroso de um Pai que me guia, e passa a voz autoritária que me impede de caminhar por mim mesma. E o maior choque passa, no fim, não tanto pela ideia de perda de "auto-suficiência", mas pelo reconhecimento de que o caminho indicado é efectivamente o melhor possível, o que se torna trágico se isso se afigura como um ultimato, fora do qual a felicidade sempre me escapará.

"O meu coração está inquieto enquanto não repousar em Deus", diz Santo Agostinho, apontando-nos algumas pistas. A reconciliação chega pois pela descoberta de uma nova dimensão da minha vida: já não a vejo como algo determinado por uma vontade completamente alheia a mim, mas como um caminho em que Criador e criatura caminham lado a lado para um mesmo fim. Descubro que sou feita para Deus e que a Ele aspiro, qualquer que seja a minha personalidade e a vida que levar - o plano de Deus para mim não é pois senão a "via-rápida" que Ele me oferece para lá chegar.
Caminhar pela estrada que Ele me propuser pode ser uma experiência de profunda inquietação - os caminhos que Deus propõe podem ser inesperados e completamente diferentes das nossas aspirações pessoais. Mas é através deles que me descobrirei a mim mesma da melhor maneira possível, e que encontrarei a plenitude, em última análise, na descoberta desse Amor como vocação maior do Homem.