quinta-feira, março 03, 2005

Confio, por isso sou livre?

Uns reduzem a liberdade e a ideia de livre-arbítrio, fazendo-o desaparecer sob o jugo da servilidade e do conformismo. Esquecem que a obediência à vontade de Deus tem que vir da adesão do coração, e da confiança plena e sincera de que o que Ele me reserva é efectivamente o melhor para mim. Se a adesão não for voluntária - e ainda mais, se não nascer da compreensão - só pode levar ou à revolta ou a um conformismo apático ou fideísta, que destrói o próprio valor da confiança.
Esta necessária compreensão de que se fala não passa por tentar escrutinizar os desígnios de Deus, nem se trata de um contrato que só assinamos depois de ter a certeza que todas as cláusulas estão ao nosso gosto. Tal como diz Edith Stein, "Tais condições não se inscrevem num contrato com o Céu. A confiança em Deus será apenas inquebrantável se se está disposto a aceitar tudo o que venha da mão do Pai. Só ele sabe o que nos convém. E se forem mais convenientes a necessidade e a privação (...) então devemos estar prontos para aceitar também isso."
A questão é de Amor. Se nos sentimos filhos amados do Pai, sabemos com verdade que ele só nos reserva o melhor para nós. Sabemos igualmente que o que isso é, Ele o sabe melhor que ninguém - confiamos na Sua Sabedoria, que tem o Amor na sua base, mais uma vez.
Falar de confiança, falar de obediência, não faz sentido se não houver antes a experiência de se sentir verdadeiramente amado por Aquele que nos pede que o sigamos.

Por outro lado, essa experiência de Amor depende da própria confiança que se tem: é ao entregar-me nas mãos de Deus, ao viver pelos Seus desígnios, que me vou apercebendo para onde Ele me leva, que vou descobrindo que há um plano feito pelo Pai para cada um de nós.
Seguir o caminho que Ele nos propõe é um exercício considerável de humildade. Não só discordamos imensas vezes de Deus quanto ao que achamos ser o melhor para nós, como nos custa a ideia de não ser auto-suficiente, de a minha auto-realização necessariamente não passar apenas por mim. Aí a Vontade de Deus deixa de surgir como plano amoroso de um Pai que me guia, e passa a voz autoritária que me impede de caminhar por mim mesma. E o maior choque passa, no fim, não tanto pela ideia de perda de "auto-suficiência", mas pelo reconhecimento de que o caminho indicado é efectivamente o melhor possível, o que se torna trágico se isso se afigura como um ultimato, fora do qual a felicidade sempre me escapará.

"O meu coração está inquieto enquanto não repousar em Deus", diz Santo Agostinho, apontando-nos algumas pistas. A reconciliação chega pois pela descoberta de uma nova dimensão da minha vida: já não a vejo como algo determinado por uma vontade completamente alheia a mim, mas como um caminho em que Criador e criatura caminham lado a lado para um mesmo fim. Descubro que sou feita para Deus e que a Ele aspiro, qualquer que seja a minha personalidade e a vida que levar - o plano de Deus para mim não é pois senão a "via-rápida" que Ele me oferece para lá chegar.
Caminhar pela estrada que Ele me propuser pode ser uma experiência de profunda inquietação - os caminhos que Deus propõe podem ser inesperados e completamente diferentes das nossas aspirações pessoais. Mas é através deles que me descobrirei a mim mesma da melhor maneira possível, e que encontrarei a plenitude, em última análise, na descoberta desse Amor como vocação maior do Homem.

2 comentários:

SilverTree disse...

É claro que há sempre a hipótese de nos revoltarmos contra a nossa própria natureza, com o facto de termos sido feitos com o desejo de Deus. Mas a não ser que se seja um ateu - e ateus "puros" existem poucos - é uma luta bastante inglória...

José Mata disse...

Nunca tive muito jeito para entender a linguagem do coração, que, aparentemente, anda ali aos saltos e trambolhões à espera de repousar numa qualquer certeza. Mas no fundo é isso que é importante, não é?, repousar em alguma coisa - encontrar uma paz.

Desconfio em conceitos como "designios", "plano de Deus", "estrada que Ele me propuser". Pressupõe demasiado que, à medida que vamos passando pelas coisas, se vão abrindo, de uma forma divina, portas que de outra forma estariam fechadas; ou então que algures no "escuro horrivel" deste mundo, há uma luz que nos indica um caminho suportável, "bendito" - no fundo parece-me uma ideia muito romântica, essa da "escolha de Deus para cada um de nós"... e, porque não dize-lo, demasiado ligado aos momentos de fragilidade da vida, aquelas alturas em que nos reconhecemos insuficientes para ultrapassar algo.

Não digo que não haja uma doutrina; também não digo que, como fizeste e parece-me bem feito, não se tente, através da linguagem, teorizar um bocado acerca destas coisas. Mas, parecem-me sempre tão enviesadas daquilo que é a vida, até mesmo da felicidade que pode experimentar sendo-se cristão - e que já a senti.

"Mas a não ser que se seja um ateu - e ateus "puros" existem poucos - é uma luta bastante inglória..."

É uma luta inglória, porque no fundo tem como objectivo uma idealização. Por muito que o corpo se torça e que a mente tente ir ao infinito, estará sempre aquem daquilo que se propôs. No fundo acredito que, para o cristão, o ideal é assumir que a fé nunca será uma certeza.